A educação do corpo



Rodolpho Motta Lima

Aproxima-se, prevista para novembro, uma nova edição do ENEM. No âmbito da educação brasileira, incluo-me entre aqueles que o julgam um alvissareiro instrumento da revolução pedagógica pela qual o país deve passar. 

O certame tem enfrentado problemas de organização e logística, mas penso que são aspectos pontuais, menores diante da magnitude dos objetivos pretendidos.

Concordo inteiramente com aqueles que atribuem ao ENEM a condição de “prova cidadã”. 

Afinal, ele é, em última análise, em muitos de seus fundamentos, a materialização das ideias dos grandes teóricos brasileiros voltados para a Educação, como Paulo Freire, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, para citar apenas alguns.

São muitas as abordagens que nos encaminham para essa conceituação.

Na prova de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, que me toca diretamente como professor de Português e Literatura, essa marca revolucionária é percebida em muitos momentos, mas, neste artigo, quero restringir-me à área que, dentro da prova, propõe a verificação das competências e habilidades dos candidatos no tocante à chamada “linguagem do corpo”.

Em um passado não muito longínquo, embora a educação física não estivesse ausente das grades curriculares dos colégios brasileiros, soaria absurda a cobrança de conceitos e conteúdos ligados a esse âmbito. 

Hoje, porém, considerado o panorama de uma sociedade como a nossa, bombardeada por mensagens midiáticas que convidam ao hedonismo, ao exibicionismo e ao egocentrismo – todos centrados no “consumo do corpo”, ou, se quiserem, do umbigo - , impõe-se que a escola ofereça um contraponto a esses “valores”, propondo às crianças e aos jovens outras óticas e posturas.

A competência de área 3, uma das nove que compõem a prova de Linguagens do ENEM, estabelece a necessidade de “compreender e usar a linguagem corporal como relevante para a própria vida, integradora social e formadora da identidade”.

E uma das habilidades que integram essa competência – para ficarmos apenas em uma – fala em “reconhecer a linguagem corporal como meio de interação social, considerando os limites de desempenho e as alternativas de adaptação para diferentes indivíduos”.

Certo ou errado, os programas do ENEM tendem a influenciar as escolas. Isso sempre aconteceu, aliás, com o vestibular tradicional, que ditava os conteúdos do ensino médio, recheando-os de assuntos que convidavam à clássica decoreba.

No caso da linguagem corporal, todos conhecemos como eram – e ainda são, em muitos locais - as aulas de educação física: pouca educação e muito físico, muito movimento e pouca reflexão, com suas disputas e competições redundando na glorificação dos “melhores” e na discriminação dos menos aptos.

Mas o ENEM está propondo uma ampla discussão disso tudo em nossos colégios. 

Os professores de educação física estão sendo convidados a desempenhar um novo e relevante papel na formação da cidadania. Palavras como interação, cooperação, socialização, alteridade tendem a passar a frequentar mais enfaticamente o vocabulário das aulas, superando a ênfase na competição. 

A conhecida frase do barão de Coubertin, que falava em “competir com dignidade” está sendo revigorada com a visão que estabelece o “competir para integrar”.

Em tempos em que se discute o “bullying” e sua crescente presença nos colégios, está reservada a esses professores, mais do que, talvez, a todos os outros, a missão de privilegiar, na prática, o coletivo diante do individual e, por paradoxal que seja, o moral diante do físico. 

Cada indivíduo é dotado de potencialidades que o tornam único, é certo. Mas, contaminados por uma ideologia globalizada que inocula em nossos corações e mentes a ideia de que é importante ser “celebridade”, “ídolo” (e ter um séquito de “seguidores”), acabamos por confundir as características que nos individualizam com a necessidade de ser o primeiro, o melhor, o único, o herói enfim. 

Estamos sendo , assim , a sociedade do “Big Brother”, do vencer de qualquer jeito e a qualquer preço, a comunidade que estigmatiza o “vice” como um perdedor.

A escola não deve reproduzir o que de negativo a sociedade vai forjando. Pelo contrário, deve ser provocadora, rebelde, convidativa à reflexão, ao juízo crítico. 

No caso em questão, cabe a ela denunciar esses falsos valores impostos pelo “salve-se quem puder” capitalista, que levam à perversa desconsideração do outro em busca do acúmulo permanente de vitórias pessoais. 

O ENEM, ao provocar esse assunto e sua discussão no ambiente escolar, cumpre uma missão cara à cidadania. E o momento em que isso se dá é ainda mais importante, porque se aproximam as Olimpíadas em nosso país. 

Afinal, antes de nos preocuparmos em forjar, artificialmente e com muito dinheiro, algumas dezenas de heróis do esporte, devemos priorizar, no âmbito do corpo, os programas de saúde que, esses sim, pela amplitude de sua aplicação, poderiam trazer resultados que encheriam de orgulho toda a sociedade brasileira.


  Rodolpho Motta Lima


Advogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.


Postado no blog Direto da Redação em 07/10/2012


Nenhum comentário:

Postar um comentário