Pela vida





Jacques Gruman*

No início duvidei, mas era verdade. Um israelense tatuou em seu braço o mesmo número que os nazistas haviam gravado em seu pai no campo de extermínio de Auschwitz. Quis, alegou, preservar a memória do pai. Não foi o único. Outros descendentes de vítimas do Holocausto, jovens em geral, fizeram o mesmo.

Forma estranha de celebrar a memória. Reproduzindo o instrumento de tortura e, indiretamente, o gesto do carrasco. 

Anos atrás, assisti uma peça de teatro em que um personagem atormentado questionava a adoração da cruz pelos cristãos. Não desconheço a simbologia que torna o martírio um caminho necessário para a redenção. Ela não é exclusiva das denominações cristãs. Posso não concordar, mas a respeito.

Me perturba, com todos os atenuantes, alçar uma forma bárbara de infligir sofrimento (inventada, aliás, pelos assírios, e não pelos romanos) em objeto de adoração. É a mesma lógica da tatuagem autoimposta pelo israelense. 

Por que vitalizar o Lado Sombrio da Força ? Para que perpetuar o que o nazismo fez, sistematicamente, para desumanizar suas vítimas ?

Religiões têm relacionamento difícil com o corpo. A circuncisão não é apenas um procedimento profilático, mas, no caso dos judeus, a marca de um pacto. Há muita controvérsia sobre sua necessidade clínica quando o bebê tem menos de duas semanas de vida. 

Para os religiosos, entretanto, o que importa não são os possíveis benefícios objetivos do corte do prepúcio. O que vale é a marca, o sinal de pertencimento. Podia ser uma tatuagem, um lacinho pendurado no dedo, mas a tradição exige a perpetuidade no corpo. Não tem conversa.

Cenas de religiosos se flagelando não são raras. Na Ashura, o festival anual dos muçulmanos xiitas, os fieis reconstituem a batalha em que foi morto Hussein ibn Ali, neto do profeta Maomé. Teatralização de um fato histórico, mimetiza a dor que marcou o momento fundacional desta vertente do islamismo. 

Muitos se submetem a um impressionante método de autoflagelação, chicoteando-se e ferindo-se. Não basta a lembrança da dor, é preciso reativá-la. Se isso fosse uma catarse, não seria necessário repeti-la todos os anos. Dor, sofrimento, tristeza, luto. 

Onde o lugar do prazer ? Por que é tão difícil encontrar um religioso sorrindo ? No Líbano, jovens xiitas doam sangue durante a Ashura, ao invés de vertê-lo em transes coletivos. Dará certo ? Tradição e mudança vivem aos tapas.

O que dizer dos filipinos que, na Semana Santa, deixam-se crucificar ? 

Como interpretar a mutilação genital feminina, tão devastadoramente comum em regiões do norte da África, num ritual que certos povos consideram “divino” ? 

Em lugares remotos, sem acesso a antibióticos, essa prática é letal. Calcula-se em um terço o número de meninas que morrem imediatamente em decorrência dela e 100 mil adolescentes morram a cada ano por complicações de parto associadas à mutilação. 

Quase 100 milhões de mulheres e meninas com mais de 10 anos sofrem, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, as sequelas da mutilação. Que, é bom não esquecer, tira da mulher a possibilidade de ter prazer sexual. 

Mais uma vez, o espectro do prazer aterroriza tradições religiosas.

Tão assustador quanto a tatuagem de Auschwitz, os pregos das cruzes filipinas e outras mutilações, é a vulgarização do corpo. 

No capitalismo, onde tudo está à venda, isso adquire dimensões paroxísticas. 

Uma estudante brasileira acaba de colocar em leilão sua virgindade. Os lances são dados pela internet e, depois de um primeiro impacto, a notícia já foi varrida para os pés de página da história. 

Como diria o Barão de Itararé, tudo na vida é passageiro, menos o cobrador e o motorneiro. 

O que deveria ser uma experiência amorosa marcante, vira supermercado, insensível, previsível, esquecível. Um pedaço do corpo é trocado por uma viagem ou um jantar em restaurante da moda. A vida e suas marcas corporais banalizam-se. 

A memória afetiva vira subproduto da conta bancária.

Não subestimo a capacidade que as religiões têm de oferecer consolos para essa tarefa complicada que é viver. 

Estamos sempre à beira de ilusões de todos os tipos. Falar e experimentar as pedras do caminho, não para consolidá-las, mas para transformá-las, exige coragem e perseverança. 

E não há garantia de fábrica de que vá dar certo. Não se devolve produto defeituoso. Karl Marx teve a sua dose.

Conta-se que ele não foi ao enterro do pai porque tinha um compromisso político. Os que conviviam com ele, acharam que aquilo não deixaria sequelas. Ledo engano. Depois de morrer, seus amigos encontraram no bolso de seu paletó ... um retrato do pai.

Atualizando um dos slogans mais conhecidos do grande filósofo, eu diria: homens e mulheres de todo o mundo, falai ! 

Deixai fluir as alegrias, as angústias, as inseguranças, o prazer. Deixai para trás a sedução do apelo fácil das cartilhas, dos profetas da dor e do imobilismo.

Imóvel é a Morte.


(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.


Postado no blog Carta Maior em 15/10/2012
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