A tragédia da cartografia proposta pela RBS




Sandro Ari Andrade de Miranda


O filósofo estadunidense Marshall Berman utilizou uma frase famosa do Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx para definir com precisão o movimento da pós-modernidade: “tudo o que é sólido, se desmancha no ar”.

Se transferirmos esta simples frase para a realidade do cotidiano do nosso noticiário de imprensa, não encontraremos síntese mais precisa. 

Todos os dias são criados escândalos, tragédias, heróis e vilões, que surgem e desaparecem de uma hora para a outra. Na maior parte das vezes não há precisão, não há conteúdo, apenas a necessidade de vender manchetes e manter a sobrevivência de um conjunto de editoriais tão vazios quanto o conteúdo de suas matérias.

Tomando como exemplo a obra de outro teórico da pós-modernidade, o sociólogo francês Jean Baudrillard, também podemos afirmar com precisão que vivemos num “regime de simulacros”, de aparências, da comercialização de um mundo virtual que só existe na mente dos diretores das empresas que dominam os meios de comunicação.

Lembro que na primeira vez que visitei o Rio de Janeiro, ou então São Paulo, tinha medo de sair à rua, tamanho era o pânico imposto pelo noticiário de televisão.

Hoje sei que a própria exacerbação da violência urbana também é um simulacro, uma forma de aprisionamento. Pessoas trancadas em apartamentos sem janelas e sem jardins se sentem seguras, e são presas fáceis para o comércio de informações e produtos vendidos na orgia comercial televisiva.

Para quer ir a um estádio com elevado grau de segurança como o Beira-Rio ou a Arena do Grêmio, se podemos comprar a cerveja da moda, o chinelo da moda, e toda uma série de produtos vendidos pela televisão? 

Por que visitarmos um museu, se os canais da Globosat já colocam a sua estética pronta e traduzida dentre das nossas casas? 

O mundo dos sonhos de alguns canais de televisão é a alegoria da caverna de Platão, onde todos seremos aprisionados num espaço para ficarmos traduzindo apenas sombras.

O exemplo maior e mais recente foi a Copa do Mundo, quando setores da imprensa, os quais devem ser sempre nominados para não esquecê-los venderam a imagem de uma país tragédia, onde nada daria certo, e de que o Brasil viveria uma vergonha monumental no maior evento futebolístico da Terra.

Estão os referidos meios de comunicação devemos sempre incluir a Rede Globo, Revista Veja, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Revista Época, Zero Hora, e toda uma escumalha de produtos muito corretamente classificados pelo jornalista Paulo Henrique Amorim na precisa sigla PIG (Partido da Imprensa Golpista),

Na prática o que se viu foi que o Brasil realmente passou vergonha, mas dentro do campo, curiosamente no espaço onde estes meios de comunicação exercem o maior poder. 

Fora das quatro linhas a Copa do Mundo foi um sucesso, não ocorreu caos aéreos, a infraestrutura urbana teve diversas obras aceleradas antes do esperado, e o mundo viu o que todos nós já sabemos, que o nosso país é muito melhor e muito mais saudável fora da tela da Rede Globo de Televisão.

Esta pequena introdução serve para colocar uma questão que tenho observado durante o processo eleitoral no Rio Grande do Sul. Se no âmbito nacional as diferenças de projetos já estão escancaradas, aqui ainda reina o simulacro da oposição.

Talvez porque não tenhamos o mesmo potencial competitivo da notícia dos grandes centros, afinal de contas quem manda na notícia no Estado, tanto escrita (Zero Hora), como radiofônica (Rádio Gaúcha), como televisiva (RBS), é sempre o mesmo grupo, a Rede Brasilsul de Telecomunicações, é mais difícil expor a diferença entre o mundo da mídia e a realidade concreta.

Não é por acaso, portanto, que dois funcionários dessa empresa disputem a posição de liderança nas vagas das eleições majoritárias: Ana Amélia Lemos e Lasier Martins. De inovador nada! De diferente nada! De construtivo, absolutamente nada! De concreto, apenas fumaça!

O comentarista do Jornal do Almoço faz um discurso tão asqueroso como o exercido todos os dias na televisão, com o uso de uma linguagem grosseira, que dói aos ouvidos de qualquer pessoal com o mínimo de senso crítico.

Já a atual Senadora apresenta um projeto político discursivo “tão oco” como as suas antigas manifestações como analista política, tão inconsistente como o seu mandato na Câmara Alta do Congresso.

Por isso fica a pergunta, como dois candidatos tão inconsistentes, tão pobres de conteúdo conseguem manter um relativo protagonismo no cenário eleitoral? 

A resposta pode estar na assertiva de Baudrillard, no simulacro!

Lembro que não é a primeira vez que os candidatos da RBS estiveram disputando o Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Antes Antônio Britto e Yeda Crusius já tiveram este privilégio exercendo governos verdadeiramente trágicos.

Não falo de governos ruins, como estamos observando na péssima administração da cidade de Pelotas, mas em governos trágicos mesmo, onde o Rio Grande do Sul andou para trás em relação a todo o seu potencial econômico e social. 

O debate sobre a dívida pública no Estado só existe por dois motivos: 1º) pela péssima negociação realizada por Britto junto à FHC; 2º) pela péssima gestão orçamentária de Yeda Crusius.

Quem viveu a era Britto no Rio Grande do Sul sabe perfeitamente do que eu falo: desemprego em todos os cantos, falta de esperanças, quebradeira das micro e das pequenas empresa, fim da indústria calçadista, falência da agroindústria da Zona Sul do Estado, e uma série de problemas que jogaram a nossa economia para um buraco sem fim. Se hoje a cidade de Rio Grande possui uma economia pujante, com forte potencial de crescimento, no idos de FHC e Britto parecia uma cidade fantasma.

Mas toda essa realidade concreta, vivida por milhões de pessoas desaparece no universo dos simulacros

Os simulacros são anti-históricos, não possuem base real, compõem um mundo vivenciado, mas não vivido. Sua essência é o mundo de Matrix, produzido da obra cinematográfica dos irmãos Wachowski.

Nas imagens de televisão da RBS seus candidatos representam um futuro maravilhoso, onde todo o cidadão poderá adquirir uma cota acionária da CORSAN ou da CEEE (modernamente privatizadas), onde todos poderão viver tranquilos e protegidos por uma polícia tão violenta como a de São Paulo.

Que os “bandidos pobres” serão aprisionados em mega-presídios, como produtores em série de ponteiras de tênis, e os “ricos” estarão devidamente internados em clínicas de reabilitação paradisíacas. 

Que a fome poderá ser suprida com a importação em massa de Big-Macs. Que os congestionamentos poderão ser substituídos pelas linhas e pelos pontos esteticamente precisos dos mapas de controles de tráfego.

O mundo projetado pela RBS e pelos seus asseclas é uma verdadeira “hiper-realidade”, uma vivência falsificada que esconderá a quebra do estado pelo populismo tributário, a demissão em massa de servidores públicos em programas de demissão voluntária, a dilapidação do patrimônio público em processos de privatização. O esquecimento da história é a sua arma principal.

Tamanho é o disparate dos discursos dos candidatos da RBS, ou melhor, da velha e conhecida direita golpista, que a tortuosa Ana Amélia Lemos promete aumentar a receita de investimentos com o corte parcial dos cargos em comissão (grifamos a promessa por tamanha estapafúrdia).

Ana Amélia é uma candidata que somente consegue se sustentar na hiper-realidade construída pelos meios de comunicação que defende. Fincada pelo improdutivo capital financeiro.

Não apresenta nada de construtivo e pior, ainda ameaça todos os avanços conquistados à duras penas pelo Rio Grande do Sul nos quatro anos de Governo Tarso Genro.

Inspirado em Jean Baudrillard posso resumir o desenho do futuro proposto por Ana Amélia na parte final na queda do mapa perfeito criado pelos cartógrafos de José Luis Borges. Quando o mapa caiu, não havia mais espaço para perfeição, mas apenas as ruínas de um passado sonhado:

“… Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa duma Província ocupava uma Cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo esses Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedades entregaram-no às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por Animais e Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas”.


Sandro Ari Andrade de Miranda é advogado, Mestre em Ciências Sociais.

Postado no site Sul21 em 30/09/2014


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