O Mensageiro : a hipocrisia mata






O filme conta a história do jornalista que descobriu a conivência e o acordo bilionário do governo de Ronald Reagan com traficantes da América Central



Léa Maria Aarão Reis

Prima irmã da traição e da mentira, a hipocrisia política sustenta, cada vez mais com maior frequência, universos paralelos que não são os da física quântica nem da espiritualidade oriental. São os mundos invisíveis da política; os bastidores aos quais poucos têm acesso – Snowden e Assange, os mais conhecidos.


A chave que abre para essa realidade do real é desmascarar a hipocrisia. Nos dicionários está lá: “O ato de fingir ter crenças, virtudes, ideias e sentimentos que a pessoa, na verdade, não possui".

Trata-se da representação, da atuação, como a de um ator, de pessoas, homens políticos e governos que fingem determinados comportamentos. Foi assim que a hipocrisia política matou, mesmo indiretamente, Gary Webb. Ele usou a chave.


Jornalista investigativo americano, nasceu e viveu na Califórnia. Webb teve vida curta. Morreu antes de completar 50 anos. 

Trabalhava como repórter num pequeno jornal inexpressivo, o San José Mercury, quando descobriu a conivência e o acordo bilionário do governo americano de Ronald Reagan com traficantes de países da América Central para introduzir no país o crack em escalas descomunais.

Eram dois os objetivos: inundar com a droga os bairros pobres, em especial o sul de Los Angeles, e alienar uma geração de jovens dos guetos das grandes cidades americanas para ações políticas, e armar os contra da Nicarágua.


Tão impulsivo quanto corajoso, Webb não mediu consequências quando enfrentou a Casa Branca, a CIA e uma formidável pressão profissional, de colegas jornalistas. 

Numa segunda fase da história, pressão, chantagem e perseguição policial dos serviços secretos foram estendidas à sua família quando ele desvendou e divulgou o esquema, uma parte da tal realidade real. Em 1996 começou a publicar suas descobertas. Enquanto isto, Washington reforçava, martelando regularmente (o que faz até hoje), o empenho oficial na ‘guerra contra as drogas’. 

A investigação de Webb foi impressionante na seriedade e amplitude, e reconhecida por colegas honestos e de prestígio.

Alexander Cockburn e Jeffrey St.Clair, do famoso site Counterpunch.com, e autores do livro Whiteout: the CIA, Drugs and the Press contam, detalhadamente, como Webb foi vítima de uma campanha da CIA destinada a destruir sua reputação - o que foi alcançado em meio a um alvoroço nacional. 

Paralelamente, a velha mídia, a convencional, publicava longas reportagens, encomendadas, é claro, atacando várias partes da criteriosa investigação que apresentava inclusive documentos desclassificados.

Kill the Messenger (2014), de Manuel Cuesta, é o título original do filme que conta a trágica história de Gary Webb, personagem real interpretado pelo ator Jeffrey Renner. 

Cuesta é conhecido como diretor de séries para a TV. O roteiro do filme é de Peter Landesman baseado em dois livros - Kill the Messenger de Nick Schou e Dark Alliance, do próprio Webb. Jornalista, escritor e pintor, Landesman já escreveu para o New Yorker e para a Atlantic Monthly sobre tráfico de armas no mundo, tráfico sexual e de refugiados e sobre o genocídio de Ruanda. Uma dupla peso pesado.


Um longa-metragem que costuma ser exibido em aulas de faculdades de Comunicação, O Mensageiro é um pouco documentário um pouco a narrativa da trajetória individual e particular de Gary Webb.

Assim a história ficaria mais palatável para as grandes plateias – e boas receitas. Ficou. É uma concessão típica dos projetos dos grandes estúdios de cinema que toleram o discurso antigovernista desde que a moral da família cristã seja mantida intacta. O que não tira o mérito do filme. Mostra mais um anti-herói da amarga saga da hipocrisia política – neste caso, dos republicanos de Reagan. 

"Você vai querer anotar essa", diz, desinibido, o chefão vivido pelo ator Andy Garcia, um dos que são entrevistados por Webb/Renner. Fala-se qualquer coisa com desenvoltura e em nome dos interesses mais obscuros do mundo paralelo e invisível da política e dos negócios - como agora ocorre aqui, nas audiências dos ‘delatores de Curitiba’, alguns já desacreditados. 

Vez ou outra o tom de O mensageiro resvala para o thriller e suspense jornalístico. No geral, Cuesta e Landesman escolheram narrar a tragédia do indivíduo (e da sua família) acossado pelo sistema cuja máscara ousou retirar.

Três grandes vergonhas nesta história: o papel da velha mídia promovendo uma campanha encomendada, sórdida, contra um colega, profissional honesto, destruindo a sua reputação. A proteção do governo ao narco-terrorista Luis Posada e seus cúmplices cubano-ianques envolvidos no negócio criminoso. 

A história escabrosa do agente Felix Rodríguez Mendigutía – o que ordenou o assassinato de Che Guevara – denunciado pelo Drug Enforcement Agency (DEA) à própria CIA, avisada das trocas de armas por cocaína que Rodriguez promovia com chefões do narcotráfico. Era um agente classificado pela DEA como "pessoa envolvida em assassinatos políticos".

Detalhe que não se encontra no filme de Cuesta: Rodríguez foi agraciado, depois, com um cargo no escritório de George Bush pai, que celebrava o seu "talento”.

Já Gary Webb nunca mais conseguiu emprego na mídia. Foi encontrado morto, aos 49 anos, com vários tiros no rosto, em 2004, na sua casa. Um laudo fornecido às pressas por um oficial de justiça dizia: suicídio. Já foi provado que o jornalista foi assassinado.

Noam Chomsky diz que “a hipocrisia é um dos males da nossa sociedade; (ela) promove a injustiça, guerras e desigualdades sociais, num quadro de auto engano que inclui a noção de que a hipocrisia em si é um comportamento necessário ou benéfico, humano e da sociedade.” Webb foi vítima desse comportamento benéfico.

*Recomenda-se assistir a O Mensageiro para refletir sobre a recente fuga milionária do narcotraficante mexicano Joaquín ‘El Chapo’ Guzmán. 


Postado no Carta Maior em 20/07/2015







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