Agora não será Como Nossos Pais !
















Extraindo significados : Como Nossos Pais - Belchior / Elis Regina




Por Djane Assunção do Obstracionando Pensamentos em 02/03/2015


Como nossos pais é uma composição de 1976, escrita pelo grande artista Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ou simplesmente Belchior. Foi lançado no álbum Alucinação, do mesmo ano de sua composição. Ficou bem conhecida pela interpretação da grande cantora de voz marcante Elis Regina Carvalho Costa, ou simplesmente Elis Regina. Que no mesmo ano de 1976 regravou a música em seu álbum Falso Brilhante.

A canção é de extrema sapiência, com uma riqueza de informações muito grande. Em poucas palavras, eu diria que a letra fala das desilusões que um indivíduo tem acerca do sistema social e político de sua época. Descreve traços da ditadura militar brasileira, a indignação diante a opressão exercida pelas forças do Estado. E junto a todo esse contexto histórico, a canção retrata a paixão pelo direito de viver, pelo amor e pelas amizades, características do convívio familiar e a expectativa de um futuro melhor.

Obs. 01: Existem diversas interpretações na internet sobre essa música, no entanto, através de um pedido de uma pessoa muito especial, eu fiz a minha versão. Na verdade a grande diferença da minha análise em relação às várias que existem na web, é o fato de aqui eu analisar verso por verso, ao invés de apenas uma visão geral. Outra coisa que destaco é que a análise foi baseada no tempo histórico do eu lírico.

Não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos. Quero lhe contar como eu vivi, e tudo o que aconteceu comigo

Bom, em primeiro lugar vemos que o eu lírico está em um diálogo com outro alguém, uma pessoa que ele deve ter grande apreço, pois a chama de meu grande amor. Em relação ao contexto completo dos versos, eu diria mais precisamente que seria um diálogo entre pai e filha. O pai pretende relatar sua experiência de vida, falar da realidade do Brasil que ele viveu e da dura realidade da sociedade atual que eles vivem. Dessa vez ele não contará dos amores descritos nas canções ou de alguma história bela relatada em um bom álbum musical.

Viver é melhor que sonhar. Eu sei que o amor é uma coisa boa, mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa

Sonhar é uma coisa ótima! Mantêm o desejo por algo aceso e o indivíduo motivado a seguir sua vida em busca da realização dos seus sonhos. No entanto, viver é ainda mais importante do que sonhar. De nada adianta ter sonhos se você não lutar por eles, não viver intensamente cada dia de sua vida em busca da sua conquista.

O eu lírico (vamos tratar ele apenas como “o Pai” daqui pra frente) diz que falar de amor é algo sadio, porém, é preciso falar do ódio, da dor, dos mais diversos sentimentos da alma humana. Qualquer canção de amor, qualquer letra de música se torna menor quando se trata de falar da vida real de alguém. Em outras palavras, qualquer ficção é menor que a realidade de uma pessoa, seja quem ela for, ou como ela vive.

Por isso cuidado meu bem, há perigo na esquina

Obs. 02: Podemos definir a Ditadura Militar como sendo o período da política brasileira em que os militares governaram o Brasil. Esta época vai de 1964 a 1985. Caracterizou-se pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar.

Nessa parte da canção o pai aspira uma preocupação, uma inquietação paternal, logo, algumas das ruas brasileiras eram campos de guerrilha urbana, cada esquina podia ser um lugar de luta por liberdade de expressão, direitos e reafirmação de valores, lutas que eram encabeçadas principalmente por jovens.

Obs. 03: Curiosidade - No ano de 1969 durante o governo da junta militar que substituiu o presidente Costa e Silva, em Contagem (MG) e Osasco (SP), greves de operários paralisam fábricas em protesto ao regime militar. A guerrilha urbana começa a se organizar. Formada por jovens idealistas de esquerda, assaltam bancos e sequestram embaixadores para obterem fundos para o movimento de oposição armada.

Obs. 04: Dentre os grupos de guerrilha urbana se destacou a ALN - Aliança Libertadora Nacional - liderada por um cara que eu não poderia deixar de falar, cuja para mim é o maior símbolo de luta no Brasil. Como diz os Racionais Mc’s em sua canção Mil Faces de Um Homem Leal: “revolução no Brasil tem um nome”: Carlos Marighella (Clique no Link e assista ao documentário/filme sobre ele, é de arrepiar).

Eles venceram e o sinal está fechado pra nós que somos jovens

Nessa parte, o pai quer deixar claro o sentimento de desilusão para com o sistema de governo. Repressão aos jovens, promessas de um país do futuro não cumpridas, censura, aflição e medo.

Obs. 05: Podemos representar esse verso da canção o comparando com o ato histórico do regime militar denominado de Ato Institucional Número 5 (AI-5). Baixado em 13 de dezembro de 1968, foi a expressão mais acabada da ditadura militar. Vigorou até dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados.

Para abraçar meu irmão e beijar minha menina na rua, é que se fez o meu braço, o meu lábio e a minha voz

Aqui o pai se refere à ausência de liberdade imposta pelo regime. O braço foi feito para abraçar, a voz feita pra ser falada, a boca para ser beijada. Em síntese ele quer dizer que não se podem realizar ações básicas de expressão em público sem que o indivíduo seja observado, reprimido ou em casos mais severos, perseguido e torturado.

Você me pergunta, pela minha paixão, digo que estou encantado como uma nova invenção. Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão. Pois vejo vir vindo no vento cheiro de nova estação. Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração

A música fala também das perspectivas dos cidadãos que saiam do interior (sertão) para os grandes centros urbanos em busca de uma melhor qualidade de vida. A letra também traz um tom positivista em meio ao caos, isso é explícito na frase “Pois vejo vir vindo no vento cheiro de nova estação”. O pai deixa claro que ele sempre terá esperança que tudo mude, que dias melhores um dia irão vir. Depois de ter sofrido, e ainda sofrer com tempos difíceis, ele sabe muito bem como é ter que lutar, a ferida em seu coração faz alusão às lembranças de sua juventude, da época de luta, de sua história de vida e de tudo aquilo que ele já passou.

Obs. 06: em uma análise aí da web que li, vi algo sobre essa parte e como compartilho da mesma opinião, citarei a respeito. A partir do governo do general e presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) houve uma intensificação do êxodo rural, isto é, a saída do homem do campo para as grandes cidades. Esse fenômeno pode ser explicado pela miséria em que o campo se encontrava devido aos meios de produção antiquados ou pelo desemprego no campo devido à automação da produção rural.

Obs. 07: “estou encantado como uma nova invenção”.

Acredito que a frase se refere à popularização da televisão (uma nova invenção) no Brasil, no final dos anos 70. Já nesta década, o mundo pode ver o Brasil ser Tri-campeão da copa do Mundo, o fim da guerra do Vietnã, o fim dos Beatles, os desenhos speed racer e pica-pau e se sentir como nunca interligado com o mundo por meio do mais poderoso veículo de comunicação até o momento.

Já faz tempo, eu vi você na rua. Cabelo ao vento, gente jovem reunida. Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais

Nessa parte o pai está fazendo uma comparação da juventude atual que ele está presenciando com os jovens dos primeiros anos de ditadura. Não se vê mais os jovens reunidos, rebelados lutando por seus ideais (como em 1969, por exemplo). A juventude atual (atual na época dele, no momento da canção) está estagnada, pois, apesar de inúmeras lutas pra tornar o país democrático e inovador, eles estão cada vez mais acovardados, presos a atitudes conservadoras. O pai é um homem repleto de lembranças muito dolorosas de um tempo em que muito se lutou por transformações, mas que da maneira que a sociedade está, pouco se conseguiu alcançar.

Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais

Mesmo depois de tanto sofrimento e de tanta luta para tornar o Brasil um país diferente, a juventude da época passou a viver conformada com a mesma sociedade autoritária que seus pais foram obrigados a suportar (não só em tempos de ditadura, mas na história geral do país). Tudo continua sendo semelhante à mesma época de imposições e proibições.

Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não. Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém

Perante o medo do enfrentamento, os ídolos não mudaram, aquelas pessoas que deram suas vidas pelos seus ideais de mudança e se eternizaram como símbolo de luta (como o exemplo de Carlos Marighella). O conformismo da atual sociedade trouxe consigo a escassez de novos “heróis”.

Você pode até dizer que eu tô por fora ou então que eu tô inventando. Mas é você que ama o passado e que não vê. É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem

Aqui é como se o pai falasse pra filha (representada na figura de toda uma juventude da época), que tudo que ele viveu foi real, ele não tá dizendo nada da boca pra fora. Nessa parte ele também retoma o mesmo sentimento de esperança para com a mudança citado anteriormente, a fé em tempos melhores. É como se o pai quisesse demonstrar pra filha o quão é importante que cada indivíduo faça a sua parte. É importante lutar e não desistir, é importante acreditar e não se calar. Se existem coisas para serem feitas, Façamos! Reclamar de tudo sem agir de nada vai adiantar. Não adianta sonhar sem viver!

Hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude, tá em casa guardado por Deus contando vil metal

Aqui o pai quer dizer que tudo pelo que ele e sua geração lutaram, ou seja, a família, um futuro melhor para seus filhos, de quase nada realmente adiantou, pois o comportamento de conformismo que era tão criticado nos pais é agora exercido pelos filhos. Tal postura de acomodamento, e imobilidade é representada por "está em casa guardado por Deus".

Os novos ideais da juventude estão cada vez mais alicerçados na tentativa de acúmulo de ganhos materiais. Não se vê mais jovens com a gana de luta, com o idealismo e rebeldia que ficou sendo característico da juventude. Tal premissa é exposta no trecho “contando o vil metal" (expressão estereotipada para dinheiro e riquezas).





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