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Os Estatutos do Homem, poema de Thiago de Mello




Dedicado a Carlos Heitor Cony, Thiago de Mello escreve, em 1964, “Os Estatutos do Homem”. Assim, meio à turbulência de um país marcado pela mácula dos Atos Institucionais que cerceavam a liberdade, suprimindo Direitos, eis que a poesia nos empresta as sua asas, na mais ampla libertação.


Os Estatutos do Homem 
(Ato Institucional Permanente)


Artigo 1

Fica decretado que agora vale a verdade, agora vale a vida e de mãos dadas marcharemos todos pela vida verdadeira;

Artigo 2

Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, tem direito a converter-se em manhãs de domingo;

Artigo 3

Fica decretado que a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra e que as janelas devem permanecer o dia inteiro abertas para o verde onde cresce a esperança;

Artigo 4

Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem, que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu; 
parágrafo único, o homem confiará no homem como 
um menino confia em outro menino;

Artigo 5

Fica decretado que os homens estão livres do julgo da mentira, nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem armadura de palavras, o homem se sentará a mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa;

Artigo 6

Fica estabelecida durante dez séculos a pratica sonhada por Isaías que o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora;

Artigo 7

Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre 
desfraldada na alma do povo;

Artigo 8

Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá a planta o milagre da flor;

Artigo 9

Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor, mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura;

Artigo 10

Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida o uso do traje branco;

Artigo 11

Fica decretado por definição que o homem é um animal que ama, e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã;

Artigo 12

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes 
com imensa begônia na lapela; 
parágrafo único, só uma coisa fica proibida, amar sem amor;

Artigo 13

Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras, expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou;

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas, a partir deste instante, a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

Thiago de Mello

Santiago do Chile, abril de 1964