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Manuela D´Ávila : Quando a maternidade e o afeto subvertem as regras da política tradicional






PUBLICADO NO PORTAL BRASIL DE FATO

POR ANELIZE MOREIRA


Homem, branco, casado, com 48 anos e ensino superior completo. Esse foi o retrato dos candidatos que disputaram as eleições de 2018, de acordo com Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Foi nesse cenário eleitoral que uma mãe subverteu as regras da política tradicional, majoritariamente masculina, lançando-se ao desafio da corrida presidencial.

Manuela d’Ávila foi pré-candidata à presidência da República pelo PCdoB, em 2017 e, em 2018, formou chapa como candidata a vice-presidente do Brasil, junto com Fernando Haddad (PT). Ela tinha uma única condição: continuar a maternar a sua filha Laura, na época com 2 anos.

Em um pleito permeado por discursos de ódio e fake news, a sororidade, o afeto, e a maternidade questionam as formas de ocupar os espaços de poder. Laura se acostumou com a dinâmica da campanha eleitoral, sem rotina, em hotéis, entre colos de amigos e militantes e as viagens que fez por 19 estados brasileiros.

Dos registros feitos em bilhetes, redes sociais e crônicas escritas por Manuela nasceu o livro “Revolução Laura”, uma narrativa de como a maternidade pode ser revolucionária.

“Quando a gente muda a nossa cultura vai achar estranho o pai que nunca está com os filhos. Alguém está. Esse alguém é a mãe. Isso tem relação com as mulheres não ocuparem o espaço público. É fácil, fácil para o homem. Quando desfila com o filho, vira mito.” Essa é a primeira ideia, já na orelha do livro sobre o que se trata a publicação que já vendeu mais de 15 mil cópias desde 8 de março.

A autora é gaúcha, jornalista, feminista e mestra em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na política foi vereadora, deputada federal e estadual. O Brasil de Fato conversou com Manuela d’Ávila sobre maternidade, política, infância, eleições, projeto de país, amor, Lula, ocupação de espaços e pautas das mulheres no governo Bolsonaro.

Confira a entrevista feita durante o lançamento no Armazém do Campo, em São Paulo, na última terça-feira (6).

Brasil de fato: Como surgiu a ideia do livro?

Manuela d’Ávila: Quando acabou a eleição no ano passado, uma amiga que é editora desse livro, a Cris Lisboa, que também foi minha colega de faculdade, pediu que eu me fizesse uma pergunta: se existia outra mulher amamentando minha filha enquanto concorreria a presidência e a vice-presidência do Brasil. Se a resposta fosse sim, era inexpressivo escrever, mas se fosse não, talvez fosse importante escrever.

Apesar de não ter a menor condição de assumir esse desafio, porque estava pra defender meu mestrado, decidi escrever. Como militante marxista, entendo que precisamos compreender o peso do trabalho reprodutivo, do trabalho não remunerado, como se dá a construção da opressão das mulheres na nossa sociedade e o impacto disso na participação das mulheres em espaços públicos.

O livro não é teórico, aliás, esse foi um dos grandes receios meus em escrevê-lo. O mais importante foi jogar luz sobre o assunto e mostrar que é muito difícil para as mulheres ocuparem esses espaços porque os homens exercem o poder, mesmo os de esquerda, com parâmetros absolutamente privilegiados que é a invisibilidade daquilo que nós fazemos.

Esse processo [descrito no livro] foi o que me salvou nessas eleições de tanto ódio, de tanta mentira. Se de um lado eu vivi a eleição mais violenta de todas, e fui o principal alvo de fake news, de outro viajei o Brasil inteiro, a maior parte do tempo junto com a Laura, embora não fossem todos os dias, porque sempre compartilhei com o meu companheiro os cuidados dela.

Diante de tanto ódio eu vi um levante de mulheres em torno do meu direito de estar com ela. Esse levante foi o que blindou os questionamentos todos da política tradicional em relação a minha militância vivendo a maternidade. Foi lindo.

O que é ser mãe em plena campanha eleitoral? Como foi ocupar um espaço tão machista e misógino?

A gente vive num país que acha razoável e até exige a presença de uma figura de primeira dama, mas faz questionamentos como: ‘seu marido não tem vontade de se envolver?’ Sim, é graças a nossa parceria que eu posso eu viver a minha vida em toda a sua potência, diferente da maior parte das mulheres.

As mesmas pessoas perguntavam assim: ‘a menina vai junto? tu não tem uma babá?’. Eu não tinha essas respostas, mas foi a maternidade, o meu espaço de viver a vida da forma mais coerente com o que eu acredito, não terceirizando cuidados, por exemplo. A Laura vai para creche desde um ano meio, mas além da creche eu decidi não terceirizar, ou seja, não tinha uma babá que andava comigo, isso não traria à tona a invisibilidade do trabalho das mães e dos pais.

Eu só tinha dois caminhos quando o PCdoB me perguntou se concorreria a presidência: não aceitar ou construir um caminho com a Laura. Nunca quis reproduzir um exercício de poder masculino. Quando falamos do poder nós estamos falando de uma lógica marcada por privilégios e o privilegio não é só ser homem branco. É ser um homem branco que utiliza do trabalho invisível das mulheres.

Se nós mulheres exercemos esse poder da mesma maneira, em última instância, estamos quase defendendo o feminismo liberal, que é a meritocracia. É difícil chegar aqui e eu estou nesse lugar dos homens desde os 22 anos. Não estou pra ser igual a eles, mas pra desvendar ou pra tornar claro quais são os mecanismos de exercício de poder deles.

Você traz no livro que a política é masculina e machista e não tem espaço para a ingenuidade e para a alegria das crianças: “Levar Laura comigo, tornou-se sem que eu percebesse uma forma de resistência a política que desumaniza”. Quais cobranças você teve por ser mãe e querer estar no trabalho com Laura? Como foi ocupar o Congresso com uma criança?

As pessoas no Brasil tratam as crianças como seres inaptos. Existe uma espécie de separação entre assunto de criança e assunto de adulto. Não existe isso, exceto assuntos como sexo, bebidas alcoólicas e coisas que pactuamos conscientemente que podem ser feitas por maiores de idade, o restante, todos os assuntos, são de todo mundo: a saúde, a doença, a morte, a vida. O que interessa é a forma como você vai conversar com alguém que está em outra etapa do desenvolvimento.

As pessoas não estimulam as crianças, elas são apartadas e protegidas depois são largadas nessa mesma sociedade. Em países com altos índices de desenvolvimento cientifico, tecnológico e humano há formas como licença dos pais e mães, a jornada de trabalho…enfim, porque isso impacta em tudo, na ideia de Previdência, nos serviços públicos, em tudo.

Se existem menos escolas e as mulheres vão ao trabalho, nos lugares que se tem mais redes de assistência às crianças, as mulheres são mais emancipadas, existe mais igualdade e as mulheres contribuem mais pra economia. Eu vivi todas as situações em que as pessoas expressavam que nenhum lugar era de criança, que lugar de criança é só onde tem brinquedo colorido de plástico, no Brasil.

Aqui [Armazém do Campo] não é lugar de criança? Porque não é lugar de criança? Minha filha sabe que a comida vem da terra desde sempre e vai desde que nasceu na feira. Feira é lugar de criança? Quem disse o que é e o que não é? A gente acaba criando um ambiente de não estimulo, de não cidadania para as crianças e isso tem um impacto grande no desenvolvimento delas e no desenvolvimento do nosso país.

O projeto de Brasil proposto por você e por Fernando Haddad era completamente distinto do que está acontecendo com governo Bolsonaro. O que seria diferente se vocês tivessem ganhado as eleições?

Seria completamente diferente. Primeiro porque a gente tem um sonho e eles constroem um pesadelo. A gente tem um sonho de um Brasil. Minha filha tem tudo em todos os aspectos, materiais, afetivos, em um mundo em que maior parte das crianças não tem nada. Nós somos aqueles que não nos conformamos que a minha filha tenha e os filhos dos outros não tenham. Eles são aqueles que os filhos têm, e [não se importam] se da porta pra fora tenha um legião de crianças sem. Isso não é uma diferença qualquer.

As razões pelas quais nós fazemos política são opostas às deles. Nós defendemos o Brasil, eles um nacionalismo fake. Nós amamos o Brasil e o nosso povo, eles odeiam o povo. Como podem ter um amor pelo Brasil se não amam o povo? Se não gostam de mulher, negros e a população LGBT, sobra quem? Quem são os normais do presidente Bolsonaro, eles próprios?

Se tivéssemos vencido as eleições seria absolutamente diferente. Estaríamos lutando para o Brasil gerar empregos. O desemprego do Brasil é avassalador. São quase 15 milhões de pessoas. A explicação para uma parte grande do sofrimento do nosso povo é essa, como se conformar? Qual a política de geração de emprego do governo Bolsonaro? São ações só pra retirar direitos, corta recursos do ensino fundamental e superior. Como ter perspectivas desenvolvimento sem educação no mundo de hoje?

O projeto deles é da morte dos sonhos. É o necrocapitalismo que administra quem vai viver e quem vai morrer e só vão viver os iguais à eles. Nós queremos que vivam todos e com diversidade, liberdade, direitos garantidos e dignidade.

Você esteve sempre ao lado do ex-presidente de Lula durante o julgamento e durante a prisão. Como você avalia esse processo de prisão política?

O significado da prisão é muito maior que a prisão de uma pessoa inocente. Lula é um inocente preso, mas o Brasil tem 40% da sua população carcerária sem julgamento, porque ele não é mais um dos inocentes presos? Porque a prisão do Lula faz parte de um plano de prisão do Brasil, a não possibilidade de liberdade para o nosso país construir um país soberano para o seu desenvolvimento.

A prisão do Lula é a prisão do Brasil aos EUA, esse modelo de capitalismo quebrado que eles pregam pra gente, embora desempenhem nas suas fronteiras. Esse Brasil que negocia liberdade das mulheres, dos LGBTs, e tem um governador (Wilson Witzel/PSC) que sobe em um helicóptero e atira em pobre? Em negros quem vivem em comunidades do Rio de Janeiro.

É essa a agressividade da prisão de Lula. É muito maior do que seria a condenação de um inocente sem nenhuma prova, é o esforço pra prender o nosso projeto de um Brasil livre e soberano.

Quem é a Manuela, mãe, mulher, política depois das eleições?

Se fosse uma equação matemática, sou alguém muito realizada de ter podido viver essa experiência de concorrer à vice-presidência do Brasil com 36 anos de idade.

Desde 17 anos, quando militava no movimento estudantil, viajei o país todo e tive possibilidade de viver esse Brasil de muitas formas mais intensas e apaixonantes. Tive a possibilidade de minha família também se apaixonar por esse Brasil que tem cores, sabores, que têm contradições gigantescas; os mares mais lindos do mundo e pessoas morando na rua.

Esse Brasil de contrastes é o país mais desigual do mundo, mas também é apaixonante. No saldo de gols, sinto que apesar de tanto ódio, as pessoas e a minha filha me salvaram. Me salvaram emocionalmente. Não foi uma eleição qualquer. É piegas, é brega, mas a força do afeto, do amor é muito mais transformadora do que a do ódio. E eu vivi isso na pele e sou testemunha disso. O amor é muito maior, isso o que nos diferencia e isso que pode nos mover. Nós temos amor, solidariedade e empatia e [sabemos] que a gente pode construir um mundo em que todas possam viver com dignidade. Essa foi a transformação na Manuela.

Tudo isso já existia em mim, mas cresceu. E, além disso, era jovem e fiquei grisalha após as eleições (risos).

Você falou nas redes sociais que já está escrevendo seu próximo livro. Qual o tema?

Vou entregar ele a daqui a 50 dias. Será sobre feminismo, suas razões, lutas, trazendo temas e conceitos de alguns debates atuais sobre a luta das mulheres.


Título: Revolução Laura: Reflexões sobre maternidade e resistência

Editora: Belas-Letras; Edição: 1st (4 de março de 2019) 

Capa comum: 192 páginas






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Para além do estereótipo materno


As tarefas e papéis femininos, na nossa sociedade, são recorrentemente definidos por dicotomias:
Mulher cuidadora x Mulher trabalhadora
Mulher decente (santa) x Mulher vulgar (vadia)
Mãe abnegada x Mãe desnaturada viciada em trabalho
A mulher que assume a função materna, na nossa sociedade, se vê diante da encruzilhada:
Mulher trabalhadora x Mãe abnegada
Esses dias li a entrevista da Elisabeth Badinter (em inglês) sobre o livro “O Conflito: a Mulher e a Mãe” que foi lançado em abril aqui no Canadá. Já tinha lido também entrevistas dela no IG e na Veja quando o livro foi lançado no Brasil, ano passado.
Capa do livro "O Conflito: A mulher e a mãe".
Acho que este debate é super importante e, apesar de ainda não ter lido o livro, acho alguns apontamentos da autora muito interessantes e  necessários mas, em alguns pontos, superficial. Quando leio sobre os papéis que as mulheres devem exercer com perfeição para serem respeitadas na sociedade sempre tenho arrepios. Não seria diferente com o papel de mãe ou de trabalhadora.
A mulher na nossa sociedade, parece-me, está sempre numa encruzilhada, tendo que abrir mão de algo, nesse caso não é diferente. A maternagem x a vida profissional assim colocado só traz desvantagens à mulher. Ter que se enquadrar em um padrão, seja ele qual for não vai necessariamente fazer alguém melhor ou pior, mas vai colocá-la num lugar em que uma escolha anula a outra e assim ao abrir mão de uma coisa pela outra a mulher fica em desvantagem. Além de ser sempre julgada pela sua decisão.
Os apontamentos negativos de Badinter em relação a maternagem me incomodam, mas não necessariamente por que a maternagem sobregarrega ou tira a mulher do mercado de trabalho, e sim por deixar implícito no seu discurso que a maternagem excluiria @ parceir@ da mulher, além da heteronormatividade que exclui da cena os casais homossexuais masculinos que tem filhos.
Foto de Uber Times no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Por que eu acho que desencorajar amamentação, slings, fraldas de pano, não vai incluir automaticamente @s parceir@s a partilhar as responsabilidades na parentagem. Afinal copinhos, colherinhas, e máquinas de lavar não são objetos misteriosos que @s parceir@s que estejam realmente dispostos a se implicar em partilhar do cuidado com os filhos não consigam desvendar.
Outra coisa que me incomoda é que, apesar de reconhecer a importância do trabalho feminino para sua autonomia e independencia, incitar a volta ao trabalho à mulher que deseja dedicar-se aos seus filhos é retirar-lhe a escolha. E isso se faz pelo bem de quem? Quando li a entrevista de Badinter pensei em duas questões:
A quem interessa à volta rápida da mulher ao mercado de trabalho?
A quem interessa a permanência da mulher/mãe junto aos filhos?
Minha resposta a essas duas questões é a mesma: ao capitalismo patriarcal. Ao se associar ao patriarcado, o capitalismo se aproveita de todas as ocasiões para tirar proveito da imposição de padrões.
Penso que ao decidir nos reproduzir estamos de alguma forma contribuido para a perpetuação dostatus quo, no sentido que criamos nossos filhos para se adequarem a sociedade vigente. Fazê-lo sem reflexão, apenas reproduzindo comportamentos e preconceitos, não vai nos fazer evoluir enquanto sociedade.
Ideal, para mim, seria uma sociedade em que a maternidade não fosse uma seara exclusivamente feminina. Que mulheres não se percebessem, nem fossem percebidas como únicas responsáveis pelos cuidados com os membros da família, sejam crianças ou idosos. Que os dois adultos responsáveis fossem igualmente implicados e compartilhassem igualmente todas as tarefas da casa e também as relacionadas aos cuidados, higiene, saúde e alimentação de crianças e idosos.
Considero fundamental para isso muitas mudanças, inclusive à nivel de linguagem, começando pela mudança do termo maternagem por parentagem. Outro ponto que considero importante é a extenção e compatilhamento da licença-maternidade que hoje é exclusiva da mulher, e deveria ser e chamar-se liscença-parental, para @s adult@s com filhos recém-nascidos. Para que @ parceir@ esteja presente e possa se implicar nos cuidados. Para isso acontecer é necessário também a implicação do Estado como criador de dispositivos que garantam a estabilidade no trabalho e instituições como creches que ajudem mães e pais na tarefa de cuidar de seus filhos.
E por fim, é necessário que nos tornemos protagonistas de nossas escolhas. Enxerguemos o machismo, que está por trás do papel de cuidadora que as mulheres incorporam sem questionar, como se fossem feitas para isso. Que aprendamos a delegar mais e não sejamos cobradas ou julgadas por isso. O vínculo da criança com seu cuidador deve ser igualmente dividido entre aqueles que estão implicados na sua educação. O vínculo materno não deve ser nem mais, nem menos importante do que o vínculo com outr@ parceir@. A imposição de padronização de papéis nas relações e arranjos familiares ou nas responsabilidades de cada um dos envolvidos na situação só traz prejuizos.
Bom mesmo é ser livre para escolher o que se quer fazer. Mesmo por que maternagem não implica, necessariamente em alienação do mundo, da vida ou do trabalho. É possível ser feminista, militante, trabalhadora, monoparental e assumir a maternagem. Né não, Luka? O importante é refletir sobre a nossa condição e termos sempre o direito de fazer nossas escolhas.


Liliane Gusmão

Feminista, sim eu sou!



Postado no blog Blogueiras Feministas em 08/05/2012